Crónica de Jorge C Ferreira | Tempos terríveis

Jorge C Ferreira

 

Tempos terríveis
por Jorge C Ferreira

 

Há momentos que se eternizam. Instantes que nos marcam o corpo para sempre. A marca rasgada. Um bisturi, agulha e linha. A tatuagem maior. O profanar do corpo. Um mapa de vida. Uma assinatura desconhecida. Um coração assaltado por galopes de vida. Uma fúria que se custa a acalmar. Um cabelo longo e despenteado. Uma vida a ganhar necessidade de ternura.

Há uma mulher que percorre todo aquele corpo e lambe todas as feridas expostas. Assim as tenta curar. Mulher santificada. Lábios de seda. Corpo de deusa. É despida que se desloca entre feridas e costuras. A pele a sentir-se abençoada. Um tecido de puro linho tapa o corpo aspergido por águas abençoadas. Um sudário que se anuncia.

Tanto homem ferido. Tanta gente mutilada. Os coutos e as dores fantasmas. As próteses. O voltar ao início da vida. O encanto perdido. Uma luz que se apaga. Uma mão mecânica. A estranheza na cara dos outros. Os cuidados que se multiplicam. Aceitar o novo corpo. Não ter medo de se mostrar. Experimentar-se de novo. Ter coragem para continuar.

O Afonso, (Afonso Valente Batista), contou-me e contou-nos. Tudo escrito num livro, (O Muro), em letra de forma. A guerra. A agonia de não saber como seria amanhã. Viver dentro do arame farpado. As minas assassinas. O perigo em cada saída. Um avião que chegava. Os aerogramas que tardavam. As noivas que viviam longe. De repente um estrondo. De onde vinha o tiro? Uns correm para os refúgios. Há quem vá na direcção certa. Um aerograma no chão salpicado de sangue. Um homem morto. Suicidado. Um tiro no queixo com a inclinação fatal. No aerograma a notícia de que a prometida o tinha trocado por outro.

Tudo isto é duro. É assim a guerra de uma dureza e estupidez difícil de compreender para quem pensa na beleza da vida. Só a estupidez leva à guerra. A ânsia de ter mais terra, de expandir fronteiras. De evangelizar. A cegueira das religiões. A leitura errada dos livros. A manipulação e a fraqueza dos homens.

Olhamos para muitos soldados e vemos os que podiam ser nossos netos. Crianças a quem a vida trocou os sonhos. A obrigatoriedade de morrer ou matar. A dor tremenda que invade os pais e avós. A selvajaria a ganhar espaço na vida dos homens.

Salman Rushdie foi esfaqueado em Nova Iorque. Não sabemos o que motivou tal acto. Não há nada que justifique uma situação destas. Já passaram 35 anos sobre os “Versículos Satânicos”. Mas a “fatwa” decretada pelo Ayatollah Khomeini, em 1989, é capaz de ainda habitar a mente de muita gente. Não sabemos se há alguma ligação com este facto. O que devemos saber é que nenhuma religião, nenhum estado, ninguém devia decretar tais coisas.

Vem-me à memória a chamada “Santa Inquisição”. As fogueiras, os assassínios. Naquele largo em frente à igreja de S. Domingos ainda se sente um cheiro a horror.

Ainda me lembro do lenço negro com que as mulheres entravam na igreja. Era como se carregassem algum “pecado” eterno. A missa em latim. As madrinhas que faziam o enxoval dos meninos mais pobres que iam para o seminário.

As mulheres afegãs a serem empurradas de novo para a idade média. Mulheres que teimam em lutar. Um povo abandonado. Por lá andaram soviéticos e americanos e estamos nisto.

Este tempo tão marcado em nós.

«Lá estás tu outra vez com essas tristezas todas. Parece que gostas de te martirizar.»

Fala de Isaurinda.

«Estamos a viver tempos difíceis, terríveis. Temos de reflectir sobre isso.»

Respondo.

«Nós sabemos e sentimos isso. Não é preciso estares a lembrar ainda mais.»

De novo Isaurinda e vai, a beijar a cruz que traz pendurada ao pescoço.

Jorge C Ferreira Agosto/2022(360)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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15 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Tempos terríveis”

  1. Cecília Vicente

    Nada é novo, tudo se repete, a história a fazer história. Sempre mais do mesmo, diferença de gerações apenas e só, também elas farão parte do era uma vez, foi uma vez, tudo a girandar à volta do que foi e continua a repetir-se. Conscientemente os maus a serem maus, os aprendizes a serem piores…
    A vida no seu ciclo, o mundo somos nós os humanos, doentes que baste para não aprendermos a mudar. Somos a irresponsabilidade de todo o universo, a mãe natureza, nós, seus filhos, carregamos, e esticamos o quanto a maldade pode ser, hoje, e sempre…
    Abraço meu amigo!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Cecília. Andamos de guerra em há muitos anos. Guerras sdm nome e que nos cansam. O negócio das armas, o seu tráfico. Já vimos muita coisa que não esquecemos. Grato pela tua presença. Abraço

  2. Ferreira Jorge C

    Obrigado Eulália. Sempre inteligentes as suas palavras. Estamos a viver um tempo de corpos retalhadas. De chantagens. De informação e contrainformação. Sim, um tempo terrível. Grato por estar aqui. Abraço

  3. Manuela Moniz

    Este é um texto bem real e triste. Não é a tua reflexão que entristece, mas sim, a trágica realidade que o mundo atravessa. Vivemos um tempo desastroso, doloroso, de crise profunda, de uma monstruosa falta de humanidade a todos os níveis.
    Será que no meio de tanta tragédia poderemos ter esperança, Jorge?
    Um abraço grande, grande, meu Amigo. Obrigada pelo teu sentir.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Manuela. Que bom ter-te aqui. A esperança tão escassa reside nos afectos e abraços que saibamos dar. Abraço

  4. Eulália Pereira Coutinho

    Excelente reflexão sobre os momentos terríveis que atravessamos. A guerra avassaladora que atinge o mundo, directa ou indirectamente. Incompreensível. Homens, mulheres, crianças, todos apanhados pela destruição.
    Não pude deixar de regressar ao passado. Os aerogramas escritos diariamente, sem saber se chegavam ao destino. Tempos difíceis. Os que passaram e os presentes.
    Como é possível nada se aprender com a história.
    Os interesses e ambição cegam os senhores do mundo .
    Voltei a olhar para uma lista de famílias inteiras, homens, mulheres e crianças, mortas de maneira selvática, quando tentavam chegar às Linhas de Torres, durante as invasões francesas. Barbárie horrenda. Passam 200 anos e continuamos a assistir à perseguição dos mais fracos.
    Aquelas mulheres que tanto tinham conquistado, voltam a ser anuladas pelo poder talibã. Promessas vãs.Que mundo é este? Onde chegaremos?
    Obrigada Amigo, por estar desse lado. Grata pelo despertar de consciencia.
    Grande abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália. Sempre as suas inteligentes palavras. É muito bom ler os seus comentários. Estamos a passar um tempo de retalhar corpos. Abraço

  5. Regina Conde

    A tua coragem e lucidez expressos na crónica de tempos que o mundo vive diariamente, não só perto de nós, como em países em que os habitantes só conhecem a fome e a morte. A crueldade patente em tudo que o poderosos tocam. Excelente e doloroso o livro que referes do escritor António Valente Batista, terei pensado que não viveria semelhantes imagens. Como sempre a tua escrita dá a volta ao mundo e com ela tempos terríveis. Abraço grande Jorge.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Regina. Obrigado pelas tuas palavras. O Afonso também se deve sentir grato. Tempos difíceis . Vamos acreditar. Abraço

  6. Maria Luiza Caetano Caetano

    Já li e reli, “Tempos terríveis.”
    A guerra sempre a guerra, pelo vil metal, a ganância dos homens não pára. Por um pedaço de terra sacrificam crianças. Que dor!
    Nada mais vou dizer.
    Chega o que a sua cultura e sensibilidade, tão bem descreve a tragédia de uma guerra.
    Um texto de excelência, escritor Amigo. Obrigada.
    Abraço imenso,

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza. Grato pelas suas palavras que me incentivam a continuar. Tempos terríveis. Vamos acreditar que vamos ultrapassar isto. Abraço

  7. José Luís Outono

    Confesso-me hesitante … talvez voltar a ler-te e anotar nas minhas reflexões sentires vividos por ti .
    Relei-o e redijo de memória os meus parágrafos, face à excelente prosa narrativa que traçaste neste calendário longo do teu viver.
    Uma vez mais sinto-me nesse enredo e desafio-me nas recordações aqui trazidas, quantas delas arrastadas por indecifráveis compassos lentos onde as perguntas de ontem continuam nos diários de hoje.
    Resta-nos continuar um mar de conflitos sem solução onde a destruição é aclamada como vitória, e as palavras simples como PAZ ou ACORDO HUMANO são traduzidas em despachos de interesses únicos, pessoais e ditos vencedores.
    Cada vez mais olho para a palavra LIBERDADE e apaixono-me quando a minha … a nossa ânsia de sermos cooperantes e amigos ainda reside numa agenda sem coração.
    Razão tem Isaurinda no questionar o porquê de lembrar … razão tens … temos … num mar de esperança bem iodado de felicidade que aguardamos sempre.
    Grande abraço amigo que muito estimo!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado José Luís. Obrigado Poeta. Belíssimo o teu comentário. Grato pela tua presença neste espaço. Uma presença que o enriquece. Abraço

  8. Isabel Soares

    Uma crónica sobre a fealdade, a tragédia humana da guerra. O caos e o abismo suportado pela vida de cada actor naquele palco.A sua incompreensibilidade. A violação da alma e do corpo daqueles seres. A impossibilidade de retorno na mesmidade. A transfiguração física e mental inscrita nas várias peles a que é necessário habituar-se e encontrar sentido. Sarar as várias feridas. Continuamente hidratando as cicatrizes pelo afecto. O olhar do outro. O amor. O único capaz de reparar o quase impossível. A tragédia vivida. A monstruosidade a integrar numa individualidade a refazer.Tarefa para todo o depois . Interminável. Instantes e eternidade.
    Bela, mas dura, esta narrativa sobre o inenarrável. Sobre o terrível.
    E a religião na sua forma estranha e violenta. A alimentar guerras e impondo visões da realidade geradoras de violência. Cúmplice do poder sobre homens e subjugadora dos valores da humanidade. Momentos históricos de imposição da violência sobre os homens. As mulheres. O seu comportamento incompreensível. A sua duplicidade e o seu divórcio com o humano. A estranheza, indignação e sofrimento do autor face às questões afloradas na sua escrita. A sua cultura e sensibilidade. A luta impossível, mas necessária. Desvelar a “tragédia “. Forçar os olhares. A visceral espera pelo fim da guerra(s) que se desenrolam, hoje.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Isabel. Sempre brilhantes os seus comentários. Vamos tentar contrariar estes tempos horríveis. A minha imensa gratidão pela sua presença. Abraço

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